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quarta-feira, 20 de abril de 2011

SARTRE E O MARXISMO


SARTRE E O MARXISMO

Sartre and the Marxism / Sartre y el Marxismo /Sartre et le Marxisme


Nildo Viana*



Resumo:

O presente texto apresenta uma análise do pensamento de Sartre em sua relação com o marxismo, abordando suas teses, as críticas dos pretensos marxistas a ele, bem como a refutação destes, além de apontar os limites e contribuições deste filósofo ao marxismo. A conclusão geral é a de que o existencialismo sartreano fornece uma contribuição importante ao marxismo e deve ser, assim, reavaliado pela teoria marxista, principalmente a sua análise da liberdade e do projeto, elementos fundamentais da filosofia de Sartre.

Palavras-Chave: Existencialismo, Marxismo, Projeto, Liberdade, Alienação.



Abstract:

The present text presents an analysis of the thought of Sartre in your relationship with the Marxism, approaching your theses, the critics of the assumed Marxists to him, as well as the refutation of these, besides pointing the limits and contributions of this philosopher to the Marxism. The general conclusion is that the existentialism of Sartre supplies an important contribution to the Marxism and it should be, like this, revalued by the Marxist theory, mainly your analysis of the freedom and of the project, essential elements of the philosophy of Sartre.

Key-words: Existentialism, Marxism, Project, Freedom, Alienation.



Sartre é considerado por muitos como o principal filósofo existencialista e desenvolveu um conceito-chave para a perspectiva existencialista: o conceito de projeto, que é onde ele encontra a expressão da liberdade humana. Sartre apregoa a liberdade humana. O homem, segundo Sartre, está condenado a ser livre. Iremos aqui ver as relações entre a concepção existencialista de Sartre com o marxismo. Em primeiro lugar, iremos fazer uma breve exposição da concepção sartreana; em segundo lugar, iremos apontar como algumas concepções pretensamente marxistas avaliaram o existencialismo sartreano; em terceiro lugar, iremos analisar criticamente estas concepções; em quarto lugar, iremos apontar os limites do existencialismo sartreano; por fim, buscaremos resgatar o conceito de projeto e a idéia de liberdade em Sartre numa perspectiva marxista.
Sartre: O Projeto e a Liberdade Humana
A concepção determinista do ser humano coloca-o como um ser enclausurado na prisão da vida psíquica, da sociedade, do organismo ou qualquer outra. Jean-Paul Sartre questiona radicalmente este determinismo e declara a existência da liberdade humana.
O primeiro passo determinante na elaboração da concepção sartreana se encontra em sua obra O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Nesta obra, Sartre irá questionar a distinção entre ser e aparência. Para Sartre, o ser é o que se apresenta imediatamente e desta forma ele postula a identidade entre ser e aparência contra a dicotomia entre ambos.  Ele apresenta ao invés desta dicotomia uma distinção no interior do próprio ser: o ser-para-si e o ser-em-si. O ser-em-si é o que é, algo bruto e preso em si mesmo, ou seja, é imanência. O ser-para-si é transcendência. A consciência contém em si uma abertura, sendo um “ser para o futuro”, “espontaneidade criadora”.
É a partir desta concepção que ele irá fundamentar sua teoria da liberdade. Entretanto, devemos compreender o que Sartre entende por liberdade. Segundo ele:
“É necessário {...} sublinhar com clareza, contra o senso comum, que a fórmula ‘ser livre’ não significa ‘obter o que se quis’, mas sim ‘determinar-se por si mesmo a querer (no sentido lato de escolher)’. Em outros termos, o êxito não importa em absoluto à liberdade. A discussão que opõe o senso comum aos filósofos provém de um mal-entendido: o conceito empírico e popular de ‘liberdade’, produto de circunstâncias históricas, políticas e morais, equivale à ‘faculdade de obter os fins escolhidos’. O conceito técnico e filosófico de liberdade, o único que consideramos aqui, significa somente: autonomia de escolha. É preciso observar, contudo, que a escolha, não sendo idêntica ao fazer, pressupõe um começo de realização, de modo a se distinguir do sonho e do desejo. Assim, não diremos que um prisioneiro é sempre livre para sair da prisão, o que seria absurdo, nem tampouco que é sempre livre para desejar sua libertação, o que seria um truísmo irrelevante, mas sim que é sempre livre para tentar escapar (ou fazer-se libertar) – ou seja, qualquer que seja sua condição, ele pode projetar sua evasão e descobrir o valor de seu projeto por um começo de ação. Nossa descrição da liberdade, por não distinguir o escolher do fazer, nos obriga a renunciar de vez à distinção entre intenção e ato. Não é possível separar a intenção do ato, do mesmo modo como não se pode separar o pensamento da linguagem que o exprime; e, assim como acontece de nossa palavra revelar-nos nosso pensamento, também nossos atos revelam nossas intenções, ou seja, permitem-nos desempenhá-las, esquematizá-las, torná-las objetos em vez de nos limitarmos a vivê-las, ou seja, a tomar delas uma consciência não-tética. Esta distinção essencial entre liberdade de escolha e liberdade de obter foi percebida certamente por Descartes, depois do estoicismo. Coloca um ponto final em todas as discussões sobre ‘querer’ e ‘poder’ que ainda hoje opõem os defensores aos adversários da liberdade” (Sartre, 1998, p. 595-596).
Sendo assim, liberdade significa autonomia de escolha. Neste momento encontramos outro termo fundamental da filosofia existencialista de Sartre: escolha. Assim, Sartre irá levantar seu edifício filosófico-existencialista, aprimorando um conjunto de termos que darão vida à sua filosofia (liberdade, escolha, projeto, essência, existência, ser-em-si, ser-para-si, etc.). Mas como sustentar que o ser humano é livre, já que nasce com uma constituição física, em uma determinada família e sociedade, e sendo que ele não escolheu nada disso? Para compreender isto temos que, anteriormente, entender a “concepção existencialista de homem”. O ponto de partida desta concepção se encontra na idéia de que, nos seres humanos, a existência precede a essência. Segundo Sartre:
“O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada; só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após o impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo” (Sartre, 1987, p. 5-6).
O homem é livre e, portanto, escolhe o que é. Aí nos encontramos com o conceito de projeto:
“{...} queremos dizer que o homem, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés do musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser” (Sartre, 1987, p. 9).
A escolha e o projeto que a dirige podem ser realizados através da “vontade” ou “das paixões”, que são apenas meios para atingir determinado fim[1]. Também não existe Deus e natureza humana. Desta forma, só resta ao homem a liberdade. Não existe, nesta concepção, espaço para o determinismo: o homem está condenado a ser livre.
Justificar as ações humanas apelando para o determinismo significa cair no que Sartre denominou má-fé. Isto está presente no debate que Sartre trava com a psicanálise. Sartre irá concordar com a concepção psicanalítica segundo a qual nos fatos mais cotidianos e corriqueiros se encontra uma manifestação da “personalidade do indivíduo”, tais como os chistes, esquecimento de nomes, etc., apontados por Freud. Segundo João da Penha:
“Nesse ponto, Sartre não só concorda com Freud, como vai mais além. No capítulo de O Ser e o Nada dedicado à análise do corpo, Sartre concebe a qualidade das coisas materiais como reveladores do Ser. Assim, na concepção sartreana, o homem se revela até mesmo em sua alimentação, pois, quando ele escolhe um alimento, escolhe o ser com que vai fazer sua carne. O que Sartre recusa é a distinção freudiana entre ego e id, qualificando-a de um exemplo típico de má-fé. Ao cindir o psiquismo entre consciente e inconsciente, Freud enseja que uma parte contemple a outra como se fosse um objeto e que, reduzida a tal condição, tire do indivíduo sua responsabilidade sobre ela. Ou seja, o inconsciente exime o homem de ser responsável pelos seus atos” (Penha, 1995, p. 62).
Mas o que é revelado nos atos corriqueiros e cotidianos, se não é o inconsciente? Sartre irá responder esta questão no capítulo de O Ser e o Nada, intitulado Psicanálise Existencial, no qual ele compara a psicanálise denominada por ele como “empírica” e a existencial. Sartre, após colocar as semelhanças entre estas duas formas de psicanálise, coloca suas diferenças:
“Com efeito, elas diferem na medida em que a psicanálise empírica determinou seu próprio irredutível, em vez de deixá-lo revelar-se por si mesmo em uma intuição evidente. A libido ou a vontade de poder constituem, de fato, um resíduo psicobiológico que não é evidente por si mesmo e não nos surge como devendo ser o termo irredutível da investigação. Em última instância, a experiência estabelece que o fundamento dos complexos seja esta libido ou esta vontade de poder e cuja libido não constituísse o projeto originário e indiferenciado. Ao contrário, a escolha à qual irá remontar-se a psicanálise existencial, precisamente por ser escolha, denuncia sua contingência originária, já que a contingência da escolha recebe legitimação como escolha, e sabemos que não precisamos ir mais longe. Cada resultado, portanto, será plenamente contingente e, ao mesmo tempo, legitimamente irredutível. Mais ainda permanecerá sendo sempre singular, ou seja, não iremos como objetivo derradeiro da investigação e fundamento de todos os comportamentos um termo abstrato e genérico, como a libido, por exemplo, que seria diferenciado e concretizado em complexos e depois em condutas detalhadas por ação de fatos exteriores e da história do sujeito, mas, pelo contrário, alcançaremos uma escolha que permanece única e que, desde a origem, é a concretude absoluta: as condutas detalhadas podem exprimir ou particularizar esta escolha, mas não podemos concretizá-la mais do que já é. Isso porque essa escolha nada mais é do que o ser de cada realidade humana e tanto faz dizer que tal conduta em particular é que exprime a escolha original desta realidade humana, pois, para a realidade humana, não há diferença entre existir e escolher-se. Por esse fato, compreendemos que a psicanálise existencial não precisa remontar-se ao ‘complexo’ fundamental, que é justamente a escolha de ser, e daí até uma abstração, como a libido, que viesse a explicá-lo. O complexo é escolha última, é escolha de ser e constitui-se como tal. Sua clarificação irá revelá-lo, a cada vez, como evidentemente irredutível. Resulta necessariamente que a libido e a vontade de poder não vão aparecer à psicanálise existencial nem como caracteres genéricos e comuns a todos os homens, nem como irredutíveis. Quando muito, será possível constatar-se, após a investigação, que elas exprimem em certos sujeitos, a título de conjuntos particulares, uma escolha fundamental que não poderia ser reduzida nem a uma, nem à outra. Vimos, com efeito, que o desejo e a sexualidade em geral exprimem um empenho originário do Para-si para recuperar seu ser alienado pelo outro. A vontade de poder pressupõe também, originariamente, o ser-Para-outro, a compreensão do outro e a escolha de conquistar a própria salvação por meio do outro. O fundamento desta atitude deve estar em uma escolha primordial que permita compreender a assimilação radical do ser-Em-si ao ser-Para-outro” (Sartre, 1998, p. 699-700).
Portanto, aqui reside a resposta à nossa questão: os atos cotidianos e corriqueiros manifestam não o inconsciente ou o complexo original e sim a escolha, o projeto original.
Entretanto, já se observou (Laing e Cooper, 1982; Penha, 1995), Sartre acabaria reformulando alguns aspectos do seu pensamento, buscando aproximá-lo do marxismo. A escolha livre do projeto passa a ser uma escolha situada. A idéia de situação passa a ter uma importância fundamental no existencialismo sartreano. Para explicar a situação, Sartre apela novamente para a psicanálise:
“Só a psicanálise permite, hoje, estudar a fundo o processo pelo qual uma criança, no escuro, tateante, vai tentar desempenhar, sem compreendê-lo, o personagem social que os adultos lhe impõem, só ela nos mostrará se a criança sufoca em seu papel, se procura fugir dele ou se o assimila inteiramente. Apenas ela permite encontrar o homem inteiro no adulto, isto é, não somente suas determinações presentes como também o peso da história” (Sartre, 1967, p. 53).
Sartre enfatiza a importância da infância e acusa os “marxistas de hoje” de se preocuparem apenas com os adultos. Para eles, “nascemos quando recebemos o primeiro salário”. Sartre irá enfatizar o pertencimento ao grupo mais próximo como elemento fundamental para delimitar a situação do indivíduo:
“Ao nível das relações de produção e ao das estruturas político-sociais, a pessoa singular encontra-se condicionada pelas suas relações humanas. Não há dúvida que esse condicionamento, na sua verdade primeira e geral, reenvia ao ‘conflito das forças produtoras com as relações de produção’. Mas tudo isso não é vivido tão simplesmente. Ou melhor, a questão é saber se a redução é possível. A pessoa vive e conhece mais ou menos claramente sua condição através de grupos. A maioria destes grupos é local, definida, imediatamente dada” (Sartre, 1967, p. 58).
Como poderíamos conciliar a importância atribuída à infância e ao grupo com a perspectiva marxista da classe social como determinação fundamental do indivíduo? Através de uma hierarquia de mediações que justamente falta ao marxismo[2]. Esta hierarquia de mediações deixa entrever que não há incompatibilidade entre o condicionamento pela infância e o condicionamento pela classe.
“A visão marxista, segundo a qual os atos sociais de uma pessoa são condicionados pelos interesses gerais de sua classe, não é de modo algum incompatível com a idéia do condicionamento do ato presente por uma experiência da infância. Quase ninguém consegue vencer os preconceitos, crenças e idéias da infância: nossas reações irracionais emergem da cegueira, da prolongada loucura do início da vida. Mas, pergunta Sartre, que é esta invencível infância senão um modo particular de viver os interesses gerais do ambiente” (Cooper, In: Laing e Cooper, 1982, p. 34).
Desta forma, Sartre inaugura uma nova fase de sua concepção existencialista, na qual o projeto não é mais uma escolha arbitrária, onde a situação não é apenas um elemento sem importância explicativa. No entanto, isto quer dizer que Sartre elaborou uma versão determinista do existencialismo a partir de sua aproximação com o marxismo? Não, pois para Sartre, mesmo em sua época de aproximação com o marxismo, a infância e a classe social não realizam um determinismo absoluto sobre o indivíduo. O ser humano continua, dentro da situação e dos condicionamentos, a ter que fazer escolhas. Ele vai constantemente superando sua situação. O homem continua sendo um projeto em ato. Somente o projeto pode explicar a história, a criatividade humana. Desta forma, Sartre redefine sua concepção de homem apresentando tanto a realidade da situação e seus condicionamentos quanto sua liberdade através do projeto:
“Para nós, o homem se caracteriza antes de tudo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele {...}; a conduta mais rudimentar deve ser determinada ao mesmo tempo em relação aos fatores reais e presentes que o condicionam em relação a certo objeto a vir que ele tenta fazer nascer. É o que denominamos projeto” (Dias, 1982, p. 98).
Sartre reconhece, simultaneamente, as determinações e a liberdade humana. Mas não abre mão de conceber o homem como ser livre, como projeto.
A Crítica Pseudomarxista a Sartre
A abordagem do existencialismo por parte do “marxismo oficial” serviu para encobrir a visão das possibilidades de aproximação entre as duas concepções. O chamado “marxismo oficial”, na verdade um pseudomarxismo, vai realizar uma análise bastante preconceituosa do existencialismo e não precisamos lembrar que os preconceitos estão intimamente ligados aos valores e interesses sociais. A transformação do marxismo em ideologia nacional da Rússia, por exemplo, erigiu um conjunto de preconceitos que dificulta uma apreciação correta e aprofundada de vários fenômenos (Korsch, 1977; Viana, 2007). O chamado “marxismo-leninismo”, devido aos interesses nacionais e de classe que ele representava, condenou um conjunto de concepções como sendo “ideologias burguesas” ou “pequeno-burguesas”, e entre elas o existencialismo.
A abordagem pretensamente marxista do existencialismo foi realizada por diversos pensadores, mas as mais influentes foram as de Georg Lukács e Adam Schaff. Georg Lukács irá combater ferrenhamente o existencialismo (o de Heidegger, Jaspers, Merleau-Ponty, Sartre e Beauvoir). Para este autor, o existencialismo é uma filosofia da pequena burguesia intelectualizada e Sartre não escapa disso. Ele relaciona O Ser e o Nada com o momento histórico do fascismo, que, segundo ele, traz o desejo de liberdade. O existencialismo sartreano é um “reflexo fiel do clima espiritual da época”. Outra colocação de Lukács deixa claro qual é o ponto de vista que parte para criticar Sartre: “O existencialismo recusa-se a atribuir um papel decisivo, na gênese das decisões dos homens, às opiniões e às idéias, em uma palavra, aos reflexos da realidade objetiva na consciência humana” (Lukács, 1979, p. 90).
A crítica lukácsiana de Sartre tem como fundamento a chamada “teoria do reflexo” de Lênin, segundo a qual o conhecimento é mero reflexo da realidade objetiva. Aliás, ele dedica o último capítulo do seu livro justamente à teoria do conhecimento de Lênin. Esta posição, obviamente, é contrária ao ponto de vista de Marx, que, entre outras coisas, defendia o caráter ativo da consciência, tal como se vê em suas Teses Sobre Feuerbach, onde ele reprova o “materialismo” por ter deixado este lado ativo ser desenvolvido pelo idealismo. Lênin, ao contrário, se refugia no materialismo burguês do século XVIII, de caráter mecanicista, tal como foi colocado por dois teóricos marxistas (Korsch, 1977; Pannekoek, 1977).
O “marxismo simplificado” de Lukács não pode fazer nada mais do que uma crítica simplista do existencialismo: sua relação com a pequena burguesia, a Segunda Guerra Mundial, o fascismo, o imperialismo e o seu caráter conservador. A mudança de posição de Sartre, observada por Lukács em artigo posterior (1966) não convence este último. Para Lukács, a Crítica da Razão Dialética começa uma página com Marx e a termina com Heidegger. Tendo em vista que em seu outro livro, A Destruição da Razão, Lukács se debateu contra o existencialismo alemão, vemos o que significa para ele esta afirmação. Porém, o que Lukács faz é defender um ponto de vista materialista mecanicista diante de uma concepção mais próxima das concepções de Marx, expressa por Sartre em seus últimos escritos.
A concepção lukácsiana do conhecimento como reflexo da realidade e sua própria concepção de realidade histórico-social (por exemplo, sua visão da relação entre classe social e filosofia, que parte de uma derivação automática de uma pela outra) torna-se obstáculo para qualquer análise justa, seja do marxismo, do existencialismo em geral ou de Sartre em particular. Sem dúvida, a classe social, o clima espiritual da época, entre inúmeros outros aspectos que circundam um pensador, influenciam sua produção intelectual e com Sartre não é diferente. Porém, existe um conjunto de mediações (que o próprio Sartre irá destacar em Questão de Método) que tornam a questão extremamente complexa e que por isso a relação simplista entre Sartre e sua classe social, bem como com sua época, apontadas por Lukács, é insustentável do ponto de vista marxista.
Adam Schaff, por sua vez, debate principalmente com o Sartre da Crítica da Razão Dialética e aponta suas “contradições”, afirmando que é impossível um casamento entre marxismo e existencialismo, pois, segundo ele, “o materialismo e o idealismo não podem se juntar, e nenhuma forma de ‘dialética’ pode uni-los” (Schaff, 1965, p. 44). Comentando o capítulo “Dialética Dogmática e Crítica”, afirma que Sartre, neste escrito, trata da liberdade individual e das relações entre indivíduo-sociedade e indivíduo-meio. Prosseguindo ele diz:
“Há certas necessidades, diz Sartre, que o meio impõe ao indivíduo na forma de leis. Mas os indivíduos, ao mesmo tempo, fazem a história. Tal é a dialética. Surge aí uma incoerência, já que o existencialismo deseja, a todo custo, preservar a doutrina da liberdade individual absoluta – a essência do existencialismo como Filosofia, sem a qual perde sua razão de existência. Sartre se vê enredado nessas incoerências de um existencialismo que reconhece, pelo menos em palavras, o condicionamento social da personalidade individual. E sai muito facilmente desta dificuldade. Retira, simplesmente, com a mão direita o que colocara com a mão esquerda. Reconhece o condicionamento social e a necessidade dele oriunda, apenas para negá-lo – ‘dialeticamente’. Trata-se de uma pobre dialética, cujos defeitos se devem, entre outras coisas, ao fato de que jamais procura estabelecer com precisão o que entende por ‘dialética’ e ‘contradição’, embora use tais palavras freqüentemente” (Schaff, 1965, p. 41).
Adam Schaff irá defender as teses do “determinismo histórico”, das “leis da evolução social”, entre outras, que revelam muito mais uma concepção positivista que marxista. Sem dúvida, Marx afirmava a existência de determinações sociais às quais os indivíduos estavam submetidos, mas não tomava isto como uma “lei universal e invariável” e sim uma determinada fase da história da humanidade, que, inclusive, para ser ultrapassada, precisaria que o homem rompesse com tais determinações. Além disso, a afirmação de Sartre segundo a qual o meio impõe necessidades sob a forma de leis aos indivíduos, e, simultaneamente, estes fazem a história, é extremamente semelhante a uma das mais famosas frases de Marx: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1986, p. 17).
Schaff acaba reproduzindo um determinismo tosco que nada tem de marxista. A afirmação de Schaff só seria aceitável se ele mostrasse onde, na obra de Sartre, se vê um apelo ao voluntarismo da liberdade absoluta. Apenas citando uma frase, inclusive semelhante a uma das mais famosas frases de Marx, ele não comprova sua afirmação e demonstra apenas um preconceito infundado.
Limites do Existencialismo de Sartre
O existencialismo sartreano atravessou duas fases e o seu período de aproximação com o marxismo foi não só o seu período final como também o seu coroamento. Por isso iremos deixar de lado a primeira fase, na qual suas divergências com o marxismo são maiores, para analisar apenas a última fase de seu pensamento. O Sartre da última fase apresenta algumas posições próximas ao pensamento de Marx e que foi desenvolvido por diversos continuadores dele. Entretanto, existem duas questões que permanecem em Sartre e que julgamos problemáticas: em primeiro lugar, sua rejeição do inconsciente – embora a idéia de inconsciente seja psicanalítica e não esteja no pensamento de Marx, a não ser embrionariamente, como alguns defendem - ela foi desenvolvida por pensadores marxistas ou influenciados pelo marxismo (Marcuse, 1988; Fromm, 1979; Reich, 1973; Schneider, 1977) e possui uma importância fundamental para se compreender a sociedade contemporânea; em segundo lugar, sua concepção de indivíduo, que se revela demasiadamente voluntarista, apesar de seu reconhecimento da situação como elemento importante para a compreensão das ações individuais.
A rejeição sartreana do inconsciente se deve ao fato de que a concepção freudiana poderia limitar a liberdade humana, tão importante no edifício filosófico deste pensador. No entanto, isto está ligado com a rejeição sartreana de uma natureza humana e se deve ao fato de que, para Freud, o inconsciente se constitui como locus dos desejos reprimidos, que são de caráter biológico, o que leva, segundo alguns, ao determinismo. Porém, Freud tinha, na verdade, uma concepção conflitual e não um determinismo do inconsciente. Para Freud, as ações humanas eram ora determinada pela consciência, ora pelo inconsciente, havendo um conflito entre ambos e é nesta dinâmica conflitiva que se originava as ações humanas (Freud, 1978, p. 89).
Se Sartre tivesse ampliado (ao invés de negado) a concepção de inconsciente e vendo ele como expressão de um conjunto de desejos que são potencialidades humanas, poderia perceber que ele não seria neste caso uma prisão para o ser humano e sim um ponto de apoio para a luta pela libertação humana. Além disso, ao negar o inconsciente e a idéia de natureza humana e postular uma liberdade humana extremamente ampla, ele apresenta, de forma oculta, uma nova concepção de natureza humana. O homem está condenado a ser livre, e esta frase revela uma visão da liberdade como essência humana, mesmo sem utilizar tal expressão. Isto foi notado por outro pensador existencialista, Paul Tillich, que afirma que o enunciado sartreano de que homem é livre significa uma afirmação sobre a natureza humana. Ele acrescenta em seu comentário sobre Sartre:
“A natureza particular do homem é o seu poder para criar-se. E se indagarmos também como é que tal poder é possível e como deve ser estruturado, necessitaremos de uma doutrina essencialista plenamente desenvolvida para responder; em resumo, devemos conhecer sobre seu corpo e seu espírito, sobre aquelas questões que, durante milênios, têm sido discutidas em termos essencialistas” (May, 1977, p. 148).
Rollo May acrescenta que:
“Não podemos ter liberdade ou um indivíduo livre sem alguma estrutura em que (ou, no caso de desafio, contra a qual) o individuo atua. Liberdade e estrutura estão mutuamente explícitas. E, sem dúvida, Sartre tem alguma estrutura. Na minha opinião, Sartre pressupõe muito mais da tradição humanista do pensamento ocidental e até muito mais dos conceitos hebraico-cristãos sobre o significado e valor da pessoa do que ele parece aperceber-se ou declarar explicitamente” (May, 1977, p. 148).
Mas voltando ao conceito de inconsciente, se Sartre tivesse apresentado (ou extraído de outras concepções) uma concepção mais ampla de inconsciente, teria percebido que a liberdade, neste caso, não seria apenas uma característica do ser humano, mas uma necessidade.
A concepção sartreana de indivíduo, na última fase do seu pensamento, é bem próxima do marxismo. Porém, ela ainda mantém uma autonomia muito grande para o indivíduo. Sem dúvida, a situação concreta do indivíduo (família, grupo de habitação, etc.) – e metodologicamente as mediações – são importantes para explicar a obra literária de Flaubert, tal como ele faz, mas isto não retira a questão da classe social.
Aqui seria proveitoso resgatar a concepção marxista de classe social, que está intimamente ligada à divisão social do trabalho. Flaubert, que segundo Sartre, teria posições que não seriam de sua classe (que Sartre identifica com a pequena burguesia) e isto só pode ser explicado por fatores ligados ao seu passado, sua família, etc.
No entanto, em que pese a importância destas mediações, consideramos que Flaubert representava realmente sua classe social e Sartre somente não percebeu isso porque não identificou corretamente qual era a classe deste literato. Observamos isto através da análise do sociólogo Pierre Bourdieu, que localiza a expansão de uma nova camada social, os artistas, que constituem o que ele denominou “campo artístico”, que cria seus próprios interesses, valores, etc. Desta forma, podemos explicar melhor a dissonância entre os escritos de Flaubert e os interesses da pequena burguesia, pois ele saía da pequena burguesia (origem familiar), mas se inseria em um novo grupo social, o dos artistas (Bourdieu, 1996).
Marxismo: Para Além do Determinismo e do Voluntarismo
Iremos, a partir de agora, ver como o marxismo se coloca no debate entre a posição determinista e a voluntarista. A grande questão por detrás deste debate é: o homem é livre ou é determinado (por Deus, natureza humana, economia, classe social, psiquismo, etc.)?
O problema da liberdade e da determinação das ações humanas pode ser analisado a partir da teoria marxista da alienação. Marx parte do conceito de natureza humana para desenvolver sua teoria da alienação. Trata-se de descobrir o que é a “essência humana”. O ser humano precisa, para garantir sua sobrevivência, de satisfazer algumas necessidades: comer, beber, dormir, amar, etc. Uma vez satisfeitas estas necessidades, o instrumento e a forma de satisfazê-las tornam-se, elas mesmas, necessidades (Marx e Engels, 2002).
Como o ser humano satisfaz suas necessidades? Para Marx, isto ocorre através da mediação do trabalho. É através do trabalho que o ser humano adquire os seus meios de sobrevivência e humaniza o mundo. Por trabalho entenda-se todas as atividades humanas. O trabalho, neste sentido, torna-se uma necessidade humana. O trabalho é objetivação do ser humano. Tal como Marx colocou:
“Antes de tudo o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural e numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ela e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potencialidades nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças ao seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. (...). Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas forças físicas e espirituais (Marx, 1988, p. 142-143)”.
O trabalho como objetivação significa, portanto, manifestação da “essência humana”. Mas como sustentar esta tese se Marx postulou o caráter negativo do trabalho compreendido como “alienação”. Isto se deve ao fato de que Marx distinguia entre trabalho enquanto objetivação, no qual ele exerce sua capacidade criadora, de trabalho enquanto alienação, no qual o ser humano se vê subjugado por forças exteriores que o impedem de desenvolver suas potencialidades. Trataremos da questão da alienação mais adiante.
Porém, os seres humanos não realizam o trabalho individualmente e sim coletivamente, através da cooperação. Essa cooperação, esta associação com outros seres humanos, torna-se também uma necessidade humana – não apenas do ponto de vista da sobrevivência, mas também do ponto de vista afetivo e psíquico. O ser humano se revela um ser social que, através do trabalho e da cooperação, se humaniza e humaniza o mundo.
Esta concepção pode parecer determinista, mas não é. O problema se encontra no conceito de necessidade. O que é necessidade? É algo que deve se realizar independentemente da razão. Por conseguinte, ela é antagônica à liberdade. No entanto, tal visão é produto de uma concepção racionalista de liberdade, na qual tudo que não é definido, determinado e escolhido pela razão é expressão de não-liberdade. Por isso consideramos interessante superar a concepção racionalista de liberdade e entender por liberdade aquilo que expressa a realização das potencialidades humanas (tanto físicas quanto mentais) e isto é determinado tanto pela consciência/razão quanto pelas necessidades orgânicas. Neste sentido, não existe antagonismo entre necessidade e liberdade, e, por conseguinte, a concepção marxista não é determinista.
Para entendermos melhor isto devemos acrescentar um terceiro conceito: o de desejo. A necessidade não é oposta ao desejo. Tal como Marx colocou, comer, beber, dormir e amar são necessidades. Se o ser humano come, bebe, dorme, ama, é por que deseja estas coisas. O desejo é fruto da necessidade. Porém, não existem apenas estas necessidades (que podemos denominar necessidades primárias), pois no próprio processo de satisfação destas necessidades surgem novas necessidades, como o trabalho (enquanto objetivação) e a sociabilidade. Estas últimas necessidades (que podemos denominar necessidades secundárias) também produzem desejos, isto é, também chegam à esfera da consciência. No entanto, tal como colocou a psicanálise, há desejos que são reprimidos (e note-se que a repressão é do desejo e não da necessidade, que continua subsistindo). Por isso podemos distinguir entre desejos conscientes e desejos inconscientes, em necessidades conscientes e inconscientes.
Marx, obviamente, não trabalhou com o conceito de inconsciente, no sentido freudiano do termo, mas fez referências significativas que apontam para uma pré-consciência do inconsciente. Segundo Erich Fromm, existe a abordagem do inconsciente em Marx e Freud. O aspecto em comum de que ambos
“Acreditam que grande parte do que o homem pensa conscientemente é determinado por forças que operam à sua revelia, ou seja, sem o conhecimento do homem; que o homem explica suas ações para si mesmo como sendo racionais ou morais, e que essas racionalizações (falsa consciência, ideologia) lhes satisfazem subjetivamente. Mas sendo impulsionado por forças que lhes são desconhecidas, o homem não está livre. Só pode atingir a liberdade (e a saúde) adquirindo consciência dessas forças motivadoras, ou seja, da realidade, ao invés de ser escravo de forças cegas. A diferença fundamental entre Marx e Freud está no respectivo conceito da natureza dessas forças que determinam o homem. Para Freud, elas são essencialmente fisiológicas (libido) ou biológicas (instinto de morte e instinto de vida). Para Marx, são forças históricas que atravessam uma evolução no processo de desenvolvimento sócio-econômico do homem” (Fromm, 1979, p. 107).
Este autor acrescenta que Marx realizou algumas afirmações que apontam para uma visão próxima de Freud, quando, por exemplo, afirmou que a sociedade realiza uma “repressão dos desejos naturais comuns”, mas também reconhece as profundas diferenças entre estes dois pensadores, pois Freud está preocupado com o indivíduo e seu aparelho psíquico, levando em consideração seus impulsos vitais, enquanto que Marx analisa o indivíduo enquanto ser social e a dinâmica da sociedade, levando em consideração seus conflitos.
Mas a concepção de Marx, por ser ampla e não restrita, como muitos pensam, abre espaço para se pensar uma pré-consciência do inconsciente. O próprio Erich Fromm nos permite perceber isto, pois segundo ele:
“Os conceitos de Marx e Freud não são mutuamente exclusivos, e isso precisamente porque Marx parte dos homens, reais, vivos, e toma por base seu processo vital real, inclusive, decerto, suas condições biológicas e fisiológicas. Marx reconhecia a existência do impulso sexual como existindo em todas as circunstâncias que podem ser modificadas pelas suas condições sociais, mas apenas no que se relaciona com a forma e a direção” (Fromm, 1979, p. 108).
Para finalizar a discussão sobre determinismo e liberdade em Marx, poderíamos recordar algumas de suas colocações, mas mais importante é ressaltar sua posição diante do indivíduo e sua ação. As ações humanas não são casuais e sim determinadas. Porém, a ação concreta de um indivíduo é a “síntese de suas múltiplas determinações”. Se João se alista no exército e José resolve ser um romancista, isto se deve a um conjunto de determinações que se desenrolam no processo histórico de vida destes indivíduos. Quais determinações? As relações familiares, as diversas formas de relações sociais do passado, as relações sociais em determinada comunidade e grupo social, sua situação de classe, ou seja, o conjunto das relações sociais travadas por este indivíduo durante sua vida.
Então o indivíduo é produto passivo das relações sociais? Não, pois o indivíduo, desde o seu nascimento, se relaciona com o mundo de forma ativa, buscando sua auto-realização. Mas esta busca não é arbitrária, pois existem, além das relações sociais que lhe impõem determinados valores e objetivos que ele torna seus, fundamentos encontrados em suas necessidades das quais tratamos anteriormente. Quando as relações sociais reprimem a satisfação destas necessidades, o indivíduo se encontra na impossibilidade de se auto-realizar. Daí a luta pela auto-realização, que não é arbitrária e sim determinada pela sociedade repressiva. A repressão, por sua vez, está ligada aos interesses da dominação de classe e esta não produz apenas isto, mas também grandes agrupamentos humanos com situações de vida diferentes e interesses antagônicos.
O indivíduo, no seu processo de desenvolvimento vai criando, nestas relações, seus valores, seus objetivos, enfim, seu “projeto de vida”. Portanto, o projeto (para utilizar expressão sartreana) que comanda esta busca não brota do vazio e sim do indivíduo histórico-concreto, que possui uma essência e esta aponta para a liberdade, que é a objetivação.
Aqui se torna importante definir o que compreendemos por liberdade. A liberdade numa concepção restrita é “liberdade de”, ou seja, significa estar livre de algo (como o prisioneiro “se livra” da prisão) e numa concepção ampla é “liberdade para”, ou seja, significa liberdade para fazer algo (agir rumo a um objetivo). Esta concepção foi apresentada por Ernst Bloch (Bicca, 1988) e retomada por Erich Fromm (Fromm, 1983). Assim, liberdade não significa “liberdade de escolha”, pois esta pressupõe a escolha, o domínio da razão. Ora, uma vez que a liberdade é produto da razão, tal como coloca a abordagem racionalista de Sartre, então basta o uso da razão. Mas se compreendemos a liberdade enquanto possibilidade de manifestação da essência humana e percebermos que esta possibilidade é restringida ou permitida pelas relações sociais, aí temos uma visão ampliada que nos permite compreender o projeto enquanto produto social e voltado para as relações sociais e não mera escolha individual.
A nossa concepção de liberdade retoma a concepção marxista: “a liberdade, para Marx, é uma espécie de superabundância criativa acima do que é materialmente essencial, aquilo que ultrapassa a medida e se torna seu próprio padrão” (Eagleton, 1999, p. 10). A liberdade é uma manifestação livre da natureza humana, ou seja, a satisfação do conjunto das necessidades humanas, incluindo as necessidades primárias – que é seu pressuposto – e o pleno desenvolvimento de suas necessidades secundárias, a objetivação e a sociabilidade. A não-liberdade é a impossibilidade de desenvolvimento pleno destas necessidades-potencialidades. Determinadas relações sociais produzem a não-liberdade e somente a superação destas é que torna possível a liberdade. A luta pela concretização da transformação social, por sua vez, já é um esboço de manifestação da liberdade, pois na luta os seres humanos desenvolvem novas relações sociais, realizam a objetivação.
A auto-realização humana é obstaculizada pelo fenômeno da alienação. O conceito de alienação em Marx tem sido interpretado de formas diferentes e contraditórias, mas não há dúvida de que o escrito em que Marx desenvolveu este conceito foi nos Manuscritos de Paris (Marx, 1983). Neste texto, ele irá enfatizar o que denominou trabalho alienado. O trabalho alienado ocorre quando o produtor perde o controle do processo de produção e passa a ser controlado por outro, o não-produtor. Neste sentido, podemos dizer que a alienação é produto da divisão da sociedade de classes, ou seja, da divisão social do trabalho e, sendo assim, é uma relação social (Viana, 1995).
Esta é uma interpretação divergente da maioria, pois não considera a alienação como um problema da consciência e nem como simplesmente a perda do produto produzido pelo trabalhador, já que estes fenômenos são conseqüências da perda de controle do processo de produção, da instauração de uma relação de dominação, isto é, da alienação.
Se o trabalhador perde o controle do processo de trabalho, então perde o controle do produto do trabalho e passa a ver este com estranhamento. Estas são conseqüências da alienação, que é a fonte da exploração e do fetichismo (estranhamento). Por conseguinte, o elemento fundamental aqui é a direção do não-trabalhador sobre o processo de trabalho e a questão da perda do produto e seus efeitos na consciência são apenas conseqüências deste processo.
Para Marx, a perda do produto do trabalho é apenas resultado do trabalho alienado, ou seja, o ponto de partida é a atividade que se torna alienada, o trabalho se torna alienado, o que significa dizer que ele deixa de ser atividade vital consciente e se torna atividade dirigida por outros. Segundo Marx, “a atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais”; “o trabalho alienado inverte a relação, pois o homem, sendo um ser autoconsciente, faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência” (Marx, 1983, p. 96). Decorrente disto, surge a propriedade privada, ou seja, a apropriação do resultado do trabalho, pois o não-produtor ao dirigir o processo de trabalho também irá dirigir o destino do seu produto. Marx diz que a análise do conceito de propriedade privada “mostra que, embora a propriedade privada pareça ser a base e causa do trabalho alienado, é antes uma conseqüência dele” (Marx, 1983, p. 96). A conseqüência disso é que o produto aparecerá ao trabalhador como algo estranho a ele: “o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, agora se lhe opõe como um ser alienado, como uma força independente do produtor” (Marx, 1983, p. 96).
Podemos, agora, recapitular o que discutimos até aqui. Há, em Marx, uma pré-consciência do inconsciente. Há também a idéia de que o ser humano necessita da liberdade, ou seja, ele é um ser consciente que precisa desenvolver suas potencialidades, o que leva a busca da liberdade e isto só pode ocorrer através de uma ação que já é, em si, liberdade (práxis, atividade consciente e teleológica, um projeto). A liberdade, para Marx, é a essência humana:
“A liberdade é a tal ponto a essência do homem que mesmo seus opositores o reconhecem, posto que a combatem; querem apropriar-se da jóia mais cara, que eles não consideram a jóia da natureza humana. Ninguém luta contra a liberdade; no máximo, luta-se contra a liberdade dos outros. Por isso todos os tipos de liberdade existiram sempre, às vezes como uma prerrogativa particular, outras como um direito geral” (Marx, 1980, p. 34).
Aqui reencontramos a idéia de projeto e de liberdade humana. Na perspectiva marxista, a liberdade é manifestação da essência humana. Quando esta essência está impossibilitada de se realizar plenamente, quando alguns – os dominantes – lutam contra a liberdade dos outros, é necessário o engajamento na luta pela libertação, no projeto libertário de emancipação humana. No entanto, a conquista da liberdade pressupõe não apenas desejo, mas a transformação social, a superação da sociedade repressiva. O processo de emancipação humana é um processo no qual os seres humanos abandonam suas ilusões e superam a alienação e passam a autogerir suas concepções, suas lutas, de forma autoconsciente. Esta autoconsciência é o projeto de libertação humana e de liberdade. Este projeto quando mobiliza os seres humanos já é uma manifestação da liberdade, além de ser condição para a libertação humana plena.
Tal posicionamento também é perceptível em Sartre, principalmente na última fase do seu pensamento. Diz ele:
“O movimento de libertação implica um fim, isto é, a abolição de todos os entraves. É este estado de liberdade propriamente dito que se visa desde o princípio; a ação de determinada política ou determinado homem da rua implica necessariamente uma crença no estado de liberdade. {...} Na verdade, o socialismo só tem sentido enquanto estado sonhado, imprecisamente concebido, aliás, no qual o homem será livre, e o que as pessoas que querem o socialismo procuram, quer o digam quer não, é este estado de liberdade. Por conseguinte, o homem revolucionário de que falávamos é um homem que concebe a liberdade como a verdadeira realidade duma sociedade ulterior e socialista” (Sartre, in: Sartre et al. 1975, p. 322).
Isto, sem dúvida, não abole as reais diferenças entre o pensamento sartreano e o marxista. A sua ênfase nos grupos e valoração dos indivíduos marcam oposições reais, embora não se deva ser exageradas, pois do ponto de vista marxista o indivíduo possui uma autonomia relativa e os grupos possuem importância no processo social e, por conseguinte, são elementos que contribuem com a compreensão da sociedade moderna. A diferença, neste caso, é de ênfase. O fato de Marx não ter fornecido grande atenção aos grupos e o indivíduo não ser o centro de sua análise – e Sartre também vai orientando sua análise cada vez mais para o grupo e classe e diminuindo a ênfase no indivíduo –, não quer dizer que isto seja incompatível como seu pensamento. Um pensador nunca esgota a realidade e, por conseguinte, nunca coloca todos os aspectos da realidade em sua análise. A falta de uma abordagem dos grupos em Marx é uma falta e não uma recusa e os marxistas posteriores pouco se dedicaram a isto, o que significa que a falta pode ter sido diminuída, mas, de certa forma, permaneceu. Uma análise marxista dos grupos é hoje uma necessidade e Sartre é uma contribuição neste sentido.
A questão da liberdade e do projeto em Sartre, tal como buscamos mostrar aqui, apresenta diferenças em relação à teoria marxista, mas também mostra muitas semelhanças. Uma síntese, por conseguinte, é possível e desejável, o que, sem dúvida, levará a algumas alterações no que se refere à concepção de Sartre. Isto partindo da idéia de que é o pensamento de Sartre que deve ser assimilado pelo marxismo e não vice-versa, mas se recordarmos o próprio Sartre, que afirmou que o marxismo é a “filosofia de nossa época”, um horizonte intelectual inultrapassável de nosso tempo, entenderemos que este é o procedimento mais adequado. O marxismo só poderá ser substituído por uma “filosofia da liberdade” quando se concretizar o “reino da liberdade”. Este último elemento, o da substituição do marxismo por uma filosofia da liberdade, é questionável, pois o marxismo é uma teoria da libertação – processo revolucionário – mas também é uma teoria da liberdade, isto é, é uma crítica da sociedade capitalista e ao mesmo tempo um esboço do pós-capitalismo, sendo uma negação da modernidade e uma concepção que germina o além da modernidade. Mas a afirmação de Sartre não recusa esta possibilidade, pois ele não aprofundou o significado dela. Assim, Sartre oferece uma importante contribuição ao marxismo, mais importante do que a de muitos pensadores que se dizem “marxistas”.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Nildo Viana é Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás; Mestre em Filosofia/UFG e Doutor em Sociologia/UnB.
[1] “A realidade humana não poderia receber seus fins, como vimos, nem de fora nem de uma pretensa ‘natureza’ interior. Ela os escolhe e, por essa mesma escolha, confere-lhes uma existência transcendente como limite externo de seus projetos. Desse ponto de vista – e se compreendermos claramente que a existência do Daisen precede e comanda sua essência –, a realidade humana, no e por seu próprio surgimento, decide definir seu ser próprio pelos seus fins. Portanto, é o posicionamento de meus fins últimos que caracteriza meu ser e identifica-se ao brotar originário da liberdade que é minha. E esse brotar é uma existência; nada tem de essência ou propriedade de um ser que fosse engendrado conjuntamente com uma idéia. Assim, a liberdade, sendo assimilável à minha existência, é fundamento dos fins que tentarei alcançar, seja pela vontade, seja por esforços passionais. Não poderia, portanto, limitar-se aos atos voluntários. Mas as volições são, ao contrário, tal como as paixões, certas atitudes subjetivas através das quais procuramos atingir fins posicionados pela liberdade original” (Sartre, 1998, p. 548).
[2] Esta posição de Sartre é uma simplificação insustentável e talvez seja por isso que ele nos remete aos “marxistas de hoje” ao invés de citar um ou outro marxista concreto (o que vai contra o próprio espírito de sua obra, que quer construir uma “antropologia estrutural e concreta”).
_______________________
Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Sartre e o Marxismo. Filosofia Unisinos, v. 9, num. 2, Maio/Agosto, 2008. p. 146-161,

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