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sábado, 12 de dezembro de 2015

Reflexões Sobre Ética




Reflexões Sobre Ética

Nildo Viana


Para nós, o homem se caracteriza antes de todo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele (...); a conduta mais rudimentar dever ser determinada ao mesmo tempo em relação aos fatores reais e presentes que o condicionam em relação a certo objeto a vir que ele tenta fazer nascer. É o que denominamos projeto.
Jean-Paul Sartre


A palavra ética recebe os mais variados sentidos. Por isso, seu significado varia dependendo de quem a pronuncia. Ética, no sentido comum da palavra, são as “boas” normas de conduta ou o “bom” comportamento moral. Para alguns filósofos, a ética ganha um sentido mais relativo e é entendida como “norma de conduta” (ou seja, uma forma sem conteúdo definido). Para outros, se tais normas são boas ou más, isto não vem ao caso e nasce, assim, o relativismo ético. Para outros filósofos, a ética é também compreendida como uma norma de conduta e que não é nem única nem absoluta, mas há uma ética “boa” e uma (ou “várias”) que é (são) má (s). Há também aqueles que sustentam a existência de apenas uma ética, ou seja, apenas uma norma de conduta de acordo com o bem, com o dever ou com a natureza humana. Por fim, há aqueles que distinguem ética e moral e definem a primeira como uma “ciência” ou como um “ramo da filosofia” que se dedica ao estudo dos problemas morais. Existem outras definições de ética, mas no presente texto trataremos de apenas algumas concepções de ética, que são aquelas que consideramos mais influentes ou que servem de “modelo exemplar” para definições semelhantes. Após refutarmos algumas concepções de ética, iremos apresentar um conceito de ética (formal) e depois iremos discutir o conteúdo da ética.

A Ética Como Ciência

O filósofo mexicano Adolfo Sanchez Vázquez distingue “problemas éticos” e “problemas prático-morais cotidianos”[1]. Devo ou não mentir para X? Os soldados do exército nazista devem ser condenados por terem cumprido as ordens de seus superiores? Devo denunciar um crime cometido por um amigo meu? Estes são exemplos de problemas prático-morais cotidianos. Eles se referem não apenas ao indivíduo da ação mas também àqueles que serão atingidos por ela (outros indivíduos, um grupo social, uma comunidade, uma nação). Segundo Vázquez,

“À diferença dos problemas prático-morais, os éticos são caracterizados pela sua generalidade. Se na vida real um indivíduo concreto enfrenta uma determinada situação, deverá resolver por si mesmo, com a ajuda de uma norma que reconhece e aceita intimamente, o problema de como agir de maneira a que sua ação possa ser boa, isto é, moralmente valiosa. Será inútil recorrer à ética com a esperança de encontrar nela uma norma de ação para cada situação concreta. A ética poderá dizer-lhe, em geral, o que é um comportamento pautado por normas, ou em que consiste o fim – o bom – visado pelo comportamento moral, do qual faz parte o procedimento do indivíduo concreto ou de todos. O problema do que fazer em cada situação concreta é um problema prático-moral e não teórico-ético. Ao contrário, definir o que é bom não é um problema moral cuja solução caiba ao indivíduo em cada situação particular, mas um problema geral de caráter teórico, de competência do investigador da moral, ou seja, do ético” [2].

Desta forma, os problemas éticos possuem um caráter de generalidade em contraposição aos problemas morais que se manifestam em situações concretas. Mas a ética pode, mesmo assim, contribuir para justificar e/ou justificar um comportamento moral, desde que não seja absolutista, apriorística, ou puramente especulativa. A ética ao revelar a relação entre comportamento moral e certas necessidades e interesses sociais de determinado grupo social poderá situar seu caráter e, em determinados casos, defini-lo como um comportamento não-moral, pois atenderia, nesse caso, apenas aos interesses egoístas de grupos que buscam, para justificar seu comportamento, apresentar sua moral como uma “norma universal”.
Algumas éticas tradicionais consideram que é missão do teórico dizer o que os homens devem fazer, tornando-se, assim, num “legislador do comportamento moral”. Para Vázquez, não é este o papel da moral. A Ética é a teoria e possui a mesma função de toda teoria, ou seja, tem como função explicar, esclarecer ou investigar certo aspecto da realidade, que no caso, é o comportamento moral em reação às éticas tradicionais, de caráter normativo, buscou-se reduzir o domínio da ética à questões teóricas a respeito da moral e dos problemas morais.
O que é a ética? Vázquez define: “a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano” [3]. Neste sentido, a ética é uma ciência e isto traz diversas implicações, entre as quais a ideia de que, tal como é toda a ciência, a ética não é normativa, ela não diz o que devemos fazer e nem julga o comportamento alheio. Como toda ciência, a ética possui um objeto de estudo: a moral. Por conseguinte, ética e moral são coisas distintas. O objetivo da ética é explicar a moral efetiva e por isso pode influir sobre ela.
Se a ética é uma ciência, então ela ao pode ser considerada um “ramo da filosofia”, pois ciência e filosofia são coisas distintas. Vázquez busca justificar a sua definição de ética como ciência da moral e refutar a concepção da ética como ramo da filosofia da seguinte forma:

“Na negação de qualquer relação entre a ética e a ciência se quer basear a atribuição exclusiva da primeira à filosofia. A ética é então apresentada como uma parte da filosofia especulativa, isto é, construída sem levar em conta a ciência e a vida real. Esta ética filosófica preocupa-se mais em buscar a concordância como princípios filosóficos universais do que com a realidade moral no seu desenvolvimento histórico e real, donde resulta também o caráter absoluto e apriorístico de suas afirmações sobre o bom, o dever, os valores morais, etc. certamente, embora a história do pensamento filosófico esteja repleta deste tipo de éticas, numa época em que a história, a antropologia, a psicologia e as ciências sociais nos proporciona materiais valiosíssimos para o estudo do fato moral, não se justifica mais a existência de uma ética puramente filosófica, especulativa ou dedutiva, divorciada da ciência e da própria realidade humana moral”[4].

Esta concepção de ética é aceitável ou não? Sem dúvida, esta concepção entra em contradição com todas as outras definições de ética. A idéia de considerar a ética como uma ciência é um tanto quanto exótica. Mas, além do exotismo, esta definição possui outras deficiências mais graves. Em primeiro lugar, ela é cientificista e reducionista. Ela é assim por reduzir a ética à uma ciência e como todos sabemos uma das principais características da ciência (principalmente no campo das ciências humanas, onde se incluiria ética) é a separação entre julgamentos de fato e julgamentos de valor, sendo que só os julgamentos de fato é que podem estar presentes na ciência, e assim a ética se torna subordinada à ciência. Sem dúvida, Vázquez tenta resolver este problema afirmando que a ética pode, após explicar a moral, contribuir para a formação de julgamentos de valor mas de qualquer forma está presente a concepção de que a razão detém a primazia sobre os valores e, além disso, que a razão detém a primazia sobre os valores e, além disso, que a razão deve preceder os valores e que razão e valores são separáveis e separados. Esta concepção é, portanto, positivista [5].
A ideia de separação entre razão e valores já foi amplamente criticada por filósofos, cientistas e críticos da ciência e/ou da filosofia. Aliás, a própria ideia de que a razão deve servir de guia para a formação de valores é, em si, uma concepção valorativa. Na verdade, razão e valores são inseparáveis. A razão não pode ser autonomizada, pois ela não pode ser um objeto em si mesma. A razão deve estar ligada e deve ser justificada por valores, pois, caso contrário, esta separação – mesmo que parcial, á que é impossível uma separação total – poderá criar inúmeras monstruosidades. O problema da relação entre ética e razão, e também a relação entre ética e ciência, já foi amplamente discutido, desde a colocação de problemas como a questão da bomba atômica até a questão da exploração e da destruição ambiental, e isto deixa entrever que não pode haver tal autonomização. A ideia de que a ética, enquanto ciência, após cumprir sua função de explicar pode contribuir com a formação de julgamentos de valor, também é positivista e está presente nas teses de vários positivistas.
Em segundo lugar, se a ética é uma ciência, ela deve possuir, como toda ciência, um objeto de estudo próprio e também um método próprio. O objeto de estudo da ética é a moral as qual é o seu método? Quando Durkheim queria fundar a sociologia como ciência escreveu As Regras do Método Sociológico, onde não definia apenas o objeto desta ciência (os fatos sociais) como também o seu método. Malinowski quando buscou desenvolver a antropologia como ciência da cultura não apenas lhe atribuiu a cultura como objeto de estudo como também, em Argonautas do Pacífico Ocidental, lançou as bases do método funcionalista. A ética, esta “nova ciência”, corre o risco de ser uma meia-ciência, tal como ciência política e a pedagogia, pois ambas possuem um objeto de estudo que também são analisados por outras ciências (em especial a sociologia) e retiram destas o seu “método”.
Em terceiro lugar, tal concepção não deixa de ter uma certa característica elitista, pois cabe ao ético definir o que é bom ou não e assim Vázquez repete os erros que ele diz encontrar nas éticas tradicionais. A elite composta pelos intelectuais especialistas em ética, é que podem definir o que é bom ou não. Por fim, podemos dizer que estas são as principais limitações desta concepção. Se dúvida, a ética ou a moral podem ser analisados (ser, segundo linguagem positivista, “objeto de estudo”) mas isto não deve servir de pretexto para uma consciência coisificada tomar conta dos assuntos. A ética é um problema anterior ao problema da ciência e por isso não pode ser resolvido por esta.
Sendo assim, esta definição de ética é mais um problema do que uma solução. Mas podemos encontrar diversas outras definições de ética. Existem aqueles que definem a ética como um ramo da filosofia. É desta concepção que iremos tratar aqui.

A Ética Como Ramo da Filosofia

Para alguns filósofos, “a ética é o ramo mais prático da filosofia” [6] Os problemas éticos são geralmente trabalhados pela tradição filosófica sem a problematização do próprio conceito de ética. Desde Aristóteles, se tornou costume entre os filósofos apresentar uma visão da qual deve ser o objetivo do ser humano e como ele dever agir, bem como discutir o que se deve fazer, os valores, o certo e o errado, o bem e o mal, sem ates de tudo definir e discutir o conceito de ética, salvo raras exceções.
Na história da filosofia só recentemente a ética passou a ser definida como um “ramo” dela mesma. Quando e como isto ocorreu? Ocorreu com a formação da moderna sociedade capitalista e com a transformação que esta sociedade produziu nas ideologias e na filosofia em especial. Na sociedade capitalista, todo saber precisa de uma aplicação prática e por isso o saber especulativo é abandonado. A ciência assume o posto de forma dominante de ideologia dominante outrora pertencente à teologia (feudalismo) e à filosofia (escravismo). Na idade média, sob o modo de produção feudal, a filosofia subsistiu, mas de forma subordinada à teologia e hoje ela sobrevive de forma subordinada à ciência.
A ciência reproduz internamente a divisão social do trabalho existente na sociedade capitalista. A primeira grande divisão ocorreu entre as ciências naturais e as ciências humanas e posteriormente no interior de cada uma delas. É justamente isto que possibilitou hoje a tentativa de transformar a ética numa ciência (Vázquez). A filosofia antiga era não-institucional ou era veiculada nas instituições criadas pelos próprios filósofos (academia, liceu). Na sociedade moderna, principalmente a partir de sua consolidação cultural ocorrida no século 20, a filosofia tornou-se institucional. Hoje, para ser filósofo, é preciso ter o diploma de graduação ou pós-graduação em alguma universidade reconhecida legalmente. Antes, bastava pensar o mundo e elaborar um conjunto de ideias para ser considerado um filósofo. Hoje, se estuda a história da filosofia e se reproduz o que os grandes filósofos do passado disseram. A autonomia da razão pregada pela filosofia iluminista se extinguiu devido sua institucionalização e ao predomínio do culto à autoridade, à razão instrumental, ao discurso técnico, segundo o qual somente os especialistas com seu conhecimento técnico podem tratar de um assunto que é de sua especialidade.
Além disso, o desenvolvimento da filosofia passou a ser subordinado ao da ciência e é por isso que ela reproduziu internamente a divisão do trabalho intelectual existente naquela. Isto, inclusive, via contra a pretensão de globalidade da filosofia que muitos filósofos ainda atribuem à ela. Surge, assim, a filosofia da história, a filosofia da arte, a filosofia da educação, a filosofia da ciência, a filosofia da linguagem, a ética, etc. desta foram, a ética como conceito filosofia passa a ter dois significados: um ramo da filosofia, ou seja, uma parte da filosofia geral, uma “filosofia particular” que se preocupa com um determinado conteúdo (a ética) e ao mesmo tempo este conteúdo, também chamado ética.
A ética como ramo da filosofia discute a questão do dever, da determinação e da liberdade, etc., ou seja, questões genéricas e não questões concretas. Alguns filósofos, influenciados pela concepção marxista, chegam a afirmar que ela “ocupa-se imediatamente das ações dos homens, e como estas estão em grande parte dirigidas para a obtenção dos meios de vida e para assegurar a continuação da vida humana, a ética está intimamente associada à base econômica da sociedade” [7]. Mas aí se encontra uma exceção. Na maioria das vezes, contemporaneamente, se coloca a ética como algo que deve ser explicado e não se problematiza a questão de como deve ser vivida.
A filosofia contemporânea, que é uma filosofia acadêmica, geralmente não problematiza o conceito de ética e se limita a sintetizar ou reproduzir a história da filosofia e suas especulações sobre ética. Sem dúvida, a história da filosofia apresentou diversas contribuições para a compreensão da questão da ética. Ocorre, porém, que a ética não é apenas um problema filosófico ou do filósofo, pois a própria filosofia deve prestar contas à ética. Neste sentido, a ética está além da ciência e da filosofia e é desta forma que iremos tratar da questão ética. Isso, de certa forma, está de acordo com o procedimento de diversos filósofos clássicos que conceberam a ética não como uma forma de analisar os problemas morais (seja como ciência seja como ramo da filosofia) e sim como uma questão mais profunda, como a posição do ser humano diante do mundo.

A Ética Como Norma de Conduta

Na tradição filosófica clássica a questão do conceito de ética não foi problematizada tal como deveria necessariamente ocorrer. Mas a ética sempre foi vista como aquilo que deve dirigir a conduta humana. Não haveria, neste sentido, grandes distinções entre ética e moral. A grande questão era, então, definir o critério que deve dirigir a ação humana. Qual é o objetivo fundamental do ser humano e que, portanto, lhe deve dirigir a ação? Para Aristóteles é a felicidade, para Kant é a boa vontade, para os hedonistas é o prazer e assim por diante. O que se percebe é que a ética possui uma fundamentação antropológica, ou seja, na natureza humana ou pelo menos numa determinada concepção do que ela seja. Entretanto, entre estes filósofos não existe apenas uma concepção de natureza humana e sim várias, e, por conseguinte, se criou várias concepções também de ética. Daí a discussão sobre o relativismo ético, tal como colocaremos ais adiante.
Como resolver esta questão? A solução para este problema só pode ocorrer reconhecendo-se que, se existem várias concepções de natureza humana, isto não contradiz a verdade de que só existe uma natureza humana. Isto não justificaria a existência de uma ética absoluta? Portanto, a discussão passa a girar entre o relativismo ético e a ética absoluta. O filósofo Wilhelm Dilthey já adiantava algumas conclusões das ciências humanas: “não se pode responder a priori à seguinte pergunta: o que é ética? A resposta, tampouco, pode ser deduzida de um par de processos éticos. Devemos interrogar a própria evolução da moral, e em diferentes épocas, sendo que esta dará respostas substancialmente distintas” [8].
Este tipo de concepção pode justificar o relativismo ético. Mas resta saber o que é pior: o relativismo ético ou uma ética absoluta? A resolução deste problema, a nosso ver, só pode ocorrer através da distinção entre ética e moral (mas não só como apresentada nas definições cientificistas ou “racionalistas” da ética como “ciência da moral” ou como “ramo da filosofia”) e do reconhecimento da existência de uma ética universal e de diversas éticas particulares.

Ética e Moral

O que distingue ética e moral? Podemos dizer que a moral é uma conduta prática que ocorre em situações concretas. Mas não se trata de uma conduta qualquer e sim de uma conduta que é dirigida por considerações sobre o dever, as obrigações, o certo e o errado, o bem e o mal, os valores. Neste sentido, tanto Vázquez quando Ash estão corretos. A distinção entre ética e moral encontra um sólido apoio no fato de que a ética nos remete aos princípios gerais que devem moer as ações humanas e a moral nos remete a uma preocupação com a questão do certo e do errado, da obrigação, etc., em uma situação concreta, ou seja, levanta este tipo de questão: é certo ou errado mentir para um amigo para evitar o seu sofrimento?[9].
Disto deriva a questão de como cada indivíduo elabora sua ética. Qual é o critério para se elaborar uma ética? Além disso, posso dizer que a ética é um problema exclusivamente individual? Aqui podemos dizer que a ética deve ter uma fundamentação na natureza humana[10], (antropológica, segundo linguagem filosófica) e, ao mesmo tempo, deve estar intimamente ligada ao projeto de vida do indivíduo. E, sem dúvida, todas éticas existentes são frutos de uma concepção de natureza humana. O que isso significa? Significa que a ética elaborada por um indivíduo deve ter como base uma concepção de natureza humana e um projeto de vida. Estes são os fundamentos para se elaborar os princípios e valores fundamentais que irão determinar a ação humana. Entretanto, em certas situações concretas pode ser impossível executar uma tal ação e, neste caso, então se deve elaborar uma ética visando remover este obstáculo para assim garantir sua concretização futura.
A ética é um problema apenas individual? A nosso ver, não, pois um indivíduo elabora sua ética não apenas em relação a si mesmo. O indivíduo, como é um ser social e só pode existir no interior de uma associação com os outros seres humanos, isto é, no interior de uma sociedade, elabora sua ética para conduzir suas relações sociais. O indivíduo só existe no interior de um conjunto de relações sociais e por isso ele deve elaborar sua ética para atuar neste contexto. Acrescente-se a isso as necessidades afetivas e existenciais do indivíduo que são concretizadas apenas nas relações sociais e veremos que a ética é um problema de cada indivíduo, mas não é um problema individual.
Além disso, o indivíduo não elabora arbitrariamente sua ética, pois ele é um ser social e sua mentalidade (e, por conseguinte, sua concepção de natureza humana), seus interesses e seu projeto são produzidos nas suas relações sociais e são determinados por tais relações. Para uns, o indivíduo é totalmente determinado e para outros é completamente livre. Do nosso ponto de vista, estas concepções são equivocadas. O indivíduo é determinado pela sociedade, mas possui uma autonomia relativa (que varia, de acordo com a sociedade e com o momento histórico) e por isso ele é responsável pelos seus atos, embora parcialmente. A sua ética, portanto, não é elaborada arbitrariamente, mas ele possui a possibilidade de repensá-la e alterá-la, embora em certas situações isto seja pouco provável. Portanto, é preciso distinguir entre possibilidades e probabilidade, sendo que a primeira apenas coloca que é possível, mas é a segunda eu pondera as tendências e contratendências e quais delas são mais fortes ou fracas. Somente assim podemos compreender a margem de liberdade do indivíduo e, consequentemente, seu grau de responsabilidade em suas ações.
Portanto, a ética deve ser compreendida como um verdadeiro ethos, tal como colocou Max Weber[11]. Entretanto, este “ethos” ou “modo de ser” deve ser diferenciado de outras formas de unidade entre discurso e ação. A ética – ou modo de ser – de um indivíduo é um tipo de comportamento que corresponde a valores fundamentais, ou seja, onde há uma unidade entre discurso e ação, sendo que o discurso, nesse caso, significa a verbalização dos valores fundamentais de um indivíduo. É o caso da ética protestante analisada por Weber, no qual se encontra um conjunto de valores e práticas que não se contradizem.
A moral, por sua vez, não pensada e desenvolvida por um indivíduo. Ela é imposta pela sociedade ao indivíduo, tal como colocou Freud[12] e posteriormente Reich, no que diz respeito à moral sexual cristã[13]. É por isso que a moral pode ser aceita e reproduzida pelo indivíduo no discurso mas não ao nível da prática. Um exemplo fornecido por Sartre pode facilitar a compreensão disto:

“Em uma pesquisa feita em um liceu para moças, à primeira pergunta ‘você mente’, 50% responderam: muitas vezes; 20%: frequentemente e 20%: algumas vezes; 10%: nunca. À segunda pergunta ‘deve-se condenar a mentira?, 95% responderam: sim; 5%: não”[14].

O contrário também pode acontecer, ou seja, um indivíduo pode reproduzir na prática a moral imposta pela sociedade e ao mesmo tempo refutá-la ao nível do discurso. Isto pode ser ilustrado pelo exemplo oferecido por diversos militantes de partidos comunistas que criticam a moral dominante, denominada “moral burguesa” e a reproduz na sua vida cotidiana. É justamente devido a esta dicotomia entre discurso e ação que se pôde cunhar o termo de “falso moralista”. Além disso, outro problema da moral se encontra no caso de indivíduos que mantém um comportamento moral em certas situações (na família, por exemplo) e um comportamento amoral em outras situações (nas relações de trabalho, por exemplo).
Existe a possibilidade de encontro entre moral e ética? Sim, e casos de indivíduos que não só aceitam mas concordam com a moral socialmente instituída, devido em parte à sua própria situação social. No entanto, a moral instituída socialmente dificilmente é praticada em sua totalidade ou recebe concordância global por parte do indivíduo. Outra situação é a de uma sociedade na qual não haja divisão social e por isso a contradição entre os indivíduos e suas concepções éticas foram abolidas e a “moral” neste caso é a ética coletiva, que, no entanto, não é mais coercitiva. No primeiro caso, temos um indivíduo adaptado à sociedade e ao discurso dominante e, no segundo, um conjunto de indivíduos livres e associados que compartilham a mesma concepção ética.
Um exemplo poderá esclarecer melhor esta questão. Machado de Assis, em um de seus contos, intitulado Conto de Escola, narra a história de um menino que não gostava de ir à escola. Este menino ficou em dúvida:

“Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. A guiei para a escola. Aqui vai a razão. (...). Na semana anterior tinha feito duos suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara e marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande exposição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado no balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes. Começou a lição escrita. Custa-me dizer que eu era um dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção”.

Após isto, ele revela que recebeu do filho do mestre e colega, chamado Raimundo, a proposta de ensinar-lhe a lição em troca de uma moeda e sua reação:

“Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar o mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca da lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação”.

Um outro colega chamado Curvelo observava tudo, e tinha um olhar ameaçador. O negócio foi feito com todo o cuidado para que o mestre e o colega curioso não descobrissem. Mas Curvelo descobriu e revelou ao mestre. Este chamou o menino e depois de lhe tomar a moeda e jogá-la fora lhe, “uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados”. Depois da palmatória, “pregou-nos outro sermão” e os qualificou de sem-vergonhas, desaforados, sem brios. À noite, o menino sonhou com a moeda: “sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo e sem escrúpulos...”. Na manhã seguinte, a idéia de ir procurar a moeda “fez-me vestir depressa” e acabou não indo à escola, pois encontrou no meio da rua uma companhia de batalhão de fuzileiros. Por fim, “voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso e ressentimento da alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...”.
O que este conto de Machado de Assis nos revela? Revela que o menino que é personagem central da história possui uma visão do que é certo e errado, que não é certo deixar de ir à aula, que não é certo se dizer o mais inteligente, que cometeu uma ação feia e assim por diante. Entretanto, continuava a fazer tudo que era considerado “errado”. Isto significa que ele reconhece o que é considerado  moralmente correto e incorreto, que concorda com isso – pois ele mesmo se diz sem virtudes, o que significa reconhecer como válida tal concepção moral – mas não executa uma prática correspondente ao ideal moral que ele conhece e concorda. Isto se deve ao motivo eu esta moral lhe foi imposta, que lhe é externa isto pode ser representado simbolicamente pelo personagem Curvelo, que é o vigia moral da história, juntamente com o mestre, que é aquele que pune. Em termos freudianos, Curvelo representa a moral repressiva da sociedade, vigilante, e que é introjetada pelo indivíduo em sua mente. O menino reconhece determinada concepção de virtude como válida mas não a pratica.
Portanto, a moral, devido ao seu caráter externo e coercitivo, é contraditória, pois até os indivíduos que concordam com ela não a praticam, com raras exceções. A ética, por sua vez, está intimamente ligada aos valores do indivíduo e portanto é coerente. Entretanto, existem situações nas quais os indivíduos contradizem seus próprios valores ou então quando os seus valores não estabelecem uma ordem de prioridade que o fizesse escolher entre duas opções semelhantes – geralmente em situações concretas – ou inseridas dentro de um mesmo universo ético.
Alguns exemplos poderão facilitar a compreensão disto. Um indivíduo que possui uma ética cristã pode ter como um de seus valores fundamentais o amor à vida e fazer do mandamento “não matarás” a sua máxima predileta, bem como em toda a sua existência não ter retirado a vida de ninguém. Mas, em uma determinada situação, por exemplo, num assalto, no qual um assaltante lhe aponta o revólver e torna uma ameaça concreta de retirar a sua vida ou de alguém próximo que esteja sendo assaltado, este indivíduo pode atingir o assaltante com uma barra de ferro e retirar-lhe a vida. Segundo a doutrina do direito, isto chama-se “legítima defesa”. Outro exemplo é o do caso deste mesmo indivíduo que prega o amor à vida e se vê no dilema de ter que escolher entre ir para a guerra e retirar muitas vidas ou ficar em casa e ser passivo diante do extermínio de milhões de vidas inocentes pelo exército nazista.
Sem dúvida, o indivíduo será obrigado a tomar uma decisão e em qualquer decisão que seja tomada se pode dizer que ele traiu, pelo menos no segundo caso, os seus valores fundamentais, o que quer dizer que ele não foi ético, ou seja, não manteve a coerência necessária entre discurso e ação que caracteriza a ética. Mas se este valor fundamental for refutado pelas próprias condições da realidade isto pode ser atribuído a uma falha do indivíduo? Aí entra a questão dos obstáculos à concretização da ética. Trataremos disto mais adiante.
Por fim, cabe encerrar a discussão sobre a relação entre moral e ética. Elas não se relacionam de forma nenhuma? Sem dúvida, a ética se caracteriza, segundo nossa definição, por apresentar os valores fundamentais do indivíduo e não por apresentar receitas de comportamento pra situações concretas. Entretanto, ela também se caracteriza pela unidade entre discurso e ação, o que significa que tais valores devem ser praticados em todas as situações concretas e, portanto, serve de guia para se decidir o certo e o errado, o dever, etc. qual a diferença entre ambas, então? Como foi dito anteriormente: a) a ética mantém necessariamente uma unidade entre discurso (e/ou projeto) e ação enquanto que a moral não possui, necessariamente, esta unidade; b) a ética nasce dos valores fundamentais do indivíduo (aceitos ou desenvolvidos por ele mesmo) enquanto que a moral é imposta ao indivíduo pela sociedade. Por conseguinte, para se estudar a ética é necessário observar a coerência entre discurso (que revelam valores fundamentais) e ação enquanto que para estudar a moral pode-se observar a prática concreta ou o discurso ou ambos em suas contradições.

A Ética Como Práxis

A ética deve ser, portanto, compreendida como práxis. O que é práxis? É uma atividade na qual o indivíduo coloca uma finalidade antes de executá-la, ou seja, é uma ação teleológica consciente. Marx afirma que o trabalho humano se distingue do trabalho manual justamente por isto, tal como se vê no exemplo que ele fornece da diferença do trabalho de uma abelha e de um arquiteto:

“Uma aranha executa operações semelhantes a do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos valos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu no favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente”[15].

Portanto, na práxis há uma unidade entre projeto e ação, entre querer e fazer. Este querer, este projeto, entretanto, não é produzido arbitrariamente pelo indivíduo – tal como na filosofia existencialista de Sartre em seu primeiro período – e sim de acordo com suas necessidades vitais e sociais. Onde está a especificidade da ética enquanto práxis? Esta especificidade reside no fato da ética ser dirigida por valores fundamentais para um indivíduo que os elabora conscientemente. Em que o indivíduo se baseia para elaborar estes valores fundamentais? Sem dúvida, ele os elabora conscientemente mas não arbitrariamente. O contexto histórico, a classe social, as ideologias existentes, a moral dominante, as contradições sociais, a família, etc., condicionam a elaboração destes princípios e valores por parte do indivíduo. É por isso que surgem diversas éticas, pois existem uma divisão social e esta se reflete na concepção de mundo dos indivíduos.
Mas tal reconhecimento não levaria ao relativismo ético? Não, pois o reconhecimento da existência de diversas éticas não significa dizer que todas sejam válidas, aceitáveis ou “boas”. Existe, sem dúvida, um conflito de éticas e o critério para se julgar este conflito só pode encontrar-se em uma dessas éticas. Isto não resolve totalmente o problema do relativismo ético, pois para resolvê-lo é preciso eleger uma dessas éticas como superior ou elaborar uma nova concepção de ética. Isto será abordado mais à frente.
Esta ética deveria estar acima das determinações sociais anteriormente colocadas? Isto é possível? Devemos reconhecer que nem todas as determinações sociais são prejudiciais e que isto, na verdade, é impossível. Então de onde vem a exigência de estar acima das determinações? Pelo simples motivo de que, para estar acima das éticas particulares, é preciso superar o particularismo (de uma determinada concepção de mundo ligada a uma classe social, partido, político, igreja etc.) e possuir um caráter universal, condizente com a natureza humana. Mas para superar este particularismo não é preciso ultrapassar todas as determinações sociais, pois algumas delas estão ou podem estar em concordância com a natureza humana e, neste sentido, o que é necessário superar são certas determinações sociais que produzem certas éticas. Desta forma, reconhecemos a possibilidade de existência de uma ética universal, pois esta corresponderia à natureza humana.
Qual é esta ética universal? O critério para definir qual ética pode ser considerada universal reside na compreensão da sociedade e de nosso posicionamento no seu interior, bem como o interesse em humanizar a sociedade ao invés do interesse egoísta que não se preocupa com o processo social marcado pela degradação humana. No entanto, a decisão do indivíduo vai depender não apenas de sua compreensão da sociedade mas também de sua posição social e valores preestabelecidos, ou seja, depende do processo histórico de vida do indivíduo e de como, devido a este processo, ele articula estas três instancias, sendo que em cada caso particular um aspecto pode se tornar mais importante do que os outros  - tal como no caso de um indivíduo que possui uma posição social que lhe dificulta adotar o critério mais adequado mas que devido a sua compreensão aprofundada da sociedade pode, junto com valores que lhe permitem tal compreensão, superar esta dificuldade.
A definição de ética aqui apresentada é a que julgamos mais adequada. Mas uma vez definido o conceito de ética, resta abordar a questão do conteúdo da ética, ou seja, é a ética universal e quais são as éticas particulares.

O Conteúdo da Ética:
Éticas Particularistas e Ética Humanista

Partindo do reconhecimento de que, de acordo com a definição de ética como práxis (ação teleológica consciente) fundamentada nos valores fundamentais de um indivíduo, existem diversas éticas, como resolver o dilema do relativismo ético. Tendo em vista que há uma diversidade de valores fundamentais que os indivíduos concretamente possuem, então se pode dizer, por conseguinte, que há uma diversidade de éticas. Isto não significa cair no relativismo ético? Não necessariamente, pois reconhecer que a existência de diversas éticas não significa considerar que todas possuem o mesmo valor, ou que todas sejam válidas. Daí distinguirmos entre éticas particularistas e ética universal.
A ética universal é aquela que corresponde à natureza humana. Se a ética deve ter uma fundamentação antropológica, então ela é universal. As éticas particularistas são aquelas que são constituídas em desacordo com a natureza humana, que representam determinados interesses sociais (de classe, grupos, etc., em determinados momentos históricos).
As éticas particularistas representam interesses particulares enquanto que a ética humanista representam interesses gerais. Pode parecer, então, que a ética humanista realiza um encontro com as representações cotidianas de ética, como norma de conduta que tem como diretriz o bem. Mas há algumas diferenças entre as representações cotidianas de ética e a ética humanista. Na primeira concepção, há “normas de conduta”, enquanto que na ética humanista ela é práxis, ou seja, não é um princípio imposto externamente e sim algo desenvolvido internamente pelo indivíduo. Além disso, a ética humanista diverge das representações cotidianas de ética no que se refere ao seu conteúdo, que no caso desta última, na maioria das vezes, é apenas uma expressão da moral dominante, apropriada em seus aspectos mais interessante por quem faz tal apropriação. A ética humanista, ao contrário, tem uma fundamentação não na moral e sim na natureza humana.
Mas o que é a natureza humana? Ela é o conjunto das necessidades e potencialidades humanas, destacando-se a criatividade e a sociabilidade que, ao lado das necessidades primárias, constituem sua essência[16]. Por isso, a ética humanista é aquela que se fundamenta neste reconhecimento:

“Na ética humanista o bem é a afirmação da vida, o desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude consiste em assumir-se a responsabilidade por sua própria existência. O mal constitui a mutilação das capacidades do homem; o vício reside na irresponsabilidade perante si mesmo”[17].

Assim, resolvemos o dilema do relativismo ético. Sem dúvida, existem muitas éticas, mas somente uma é verdadeira, válida, e esta é a ética humanista, que é uma ética universal. As éticas particularistas são produtos históricos e sociais transitórios que não correspondem à natureza humana. O reconhecimento da existência das éticas particularistas não significa que elas sejam válidas, mas tão-somente que, do ponto de vista formal, são éticas. Também se fundamentam numa concepção de natureza humana mas expressam interesses particulares, de determinadas classes ou grupos sociais. A ética humanista, ao contrário, expressa não o particular e sim o universal. É a única ética válida, porque universal.
O relativismo ético é, no fundo, uma impostura. Considerar que todas as éticas sejam válidas significa aceitar todas as práticas e não colocar nenhum valor como superior a outros. O valor de lucrar acima de tudo é tão válido quanto o amor ao próximo? O valor de vencer a qualquer custo é tão válido quanto o valor da cooperação? Obviamente, isto é inaceitável. Mas, além disto, afirmar que todos os valores são válidos é, em si, uma afirmação de valor e, por conseguinte, o relativismo ético é mais um discurso que nunca se realiza na prática e serve tão-somente para esconder uma opção ética que é anti-humanista e que está a serviço da dominação.

Da Ética Humanista à Ética revolucionária

Mas a ética humanista consegue ser concretizada? Aqui entramos numa problemática que já havíamos colocado anteriormente. Trata-se dos obstáculos para a concretização da ética humanista. Numa sociedade fundamentada na exploração, na alienação, na opressão, é possível se concretizar uma ética humanista? Uma solução para isto foi apresentada por Dussel, que é a ética da libertação. Discutiremos ela mais à frente.
Antes vamos problematizar a possibilidade da ética humanista em uma sociedade fundamentada na degradação humana. A vida é um valor fundamental para todos os seres humanos e para a ética humanista. No entanto, em uma situação concreta, é possível se ver diante da situação de ter que se desrespeitar o próprio valor que nos é de suma importância. Um indivíduo na França vê seu país ser invadido pelas tropas nazistas e assassinar milhares de pessoas e ele, se for fiel ao valor em relação à vida, não irá agir contra tais tropas. Ora, então ele enfrenta um dilema ético, pois não agir significa deixar milhares de vidas serem exterminadas e agir implica em, ele próprio, retirar vidas. Tomemos outro exemplo: um indivíduo no Brasil também tem a vida como valor fundamental e está de acordo com a ética humanista, mas se observarmos que ele vive numa sociedade capitalista que é responsável pela fome e miséria de milhões de pessoas, que morrem diariamente, bem como é uma sociedade que produz formas extremas de violência que levam também à morte milhares de pessoas e, também que ele “vive normalmente” e, portanto, não busca interferir nesta sociedade para transformá-la, então ele não está de acordo com a ética humanista. Um terceiro indivíduo vive e não consegue realizar suas potencialidades. Por exemplo, “amizades” e outros elementos exigidos pela sociedade (e pouco éticos... do ponto de vista da ética humanista) para concretizar tal desejo autêntico de realização pessoal. Ele possui os valores fundamentais da ética humanista mas não os realiza na prática devido às condições sociais extremas.
Para resolver esta questão temos que reconhecer que a ética humanista só se concretiza efetivamente numa sociedade humanizada, e não pode se concretizar numa sociedade desumana, fundamentada na alienação. Mas retomemos os exemplos e tentemos uma solução. O indivíduo que se encontra no dilema ético de ser omisso e não intervir no processo de extermínio de milhares de vidas pelo exército nazista, sendo que a vida é um valor fundamental, ou agir e ele mesmo retirar vidas, que também é contra seus valores, como deve agir? Tendo em vista que é impossível a realização, em qualquer um dos casos, da ética humanista, como se deve proceder? Deve elaborar uma ética que se fundamenta num saber[18] sobre a situação concreta e que aponte para uma forma de superação deste obstáculo para a concretização da ética humanista. Esta só pode ser uma ética revolucionária. A partir da compreensão da sociedade contemporânea, ela mesma o maior obstáculo para a concretização da ética humanista, então o valor prioritário deve ser a constituição de uma nova sociedade, na qual seja superado os obstáculos para a efetivação da ética humanista. O valor fundamental é a emancipação humana, a libertação humana em geral, via condições concretas, via revolução proletária. Eis a concepção marxista confirmada pela ética humanista.
O segundo exemplo, o do indivíduo omisso, também é resolvido com a ética revolucionária. Já que o valor fundamental que é a vida é impedido de se realizar, então é preciso remover o obstáculo para que se torne possível. E por isso, a ética revolucionária aponta para a necessidade de transformação social e o indivíduo deve atuar neste sentido. É claro que esta decisão depende do nível de consciência do indivíduo. Tal como colocou Ash:

“A exploração do homem pelo homem existiu, de uma forma ou de outra, desde que a sociedade humana se dividiu, pela primeira vez, em classes; e, em proporções maiores ou menores, a troca de mercadorias tem sido uma parte da atividade econômica, num ou noutro lugar, há muitos séculos. Restava ao capitalismo desenvolver a produção mercantil ao ponto em que ela se transformou num disfarce para a mais grosseira forma de exploração, ao mesmo tempo que aqueles que conheciam o disfarce sugeriam a possibilidade de uma que nada tivesse a disfarçar, por ter suprimido a exploração de uma classe por outra. É a impessoalidade mesa da opressão econômica sob o capitalismo que não só permite os abusos excessivos como parece colocá-los acima da crítica moral poucas pessoas, educadas pela sociedade, são completamente destituídas de sentimentos humanos; mas se o sofrimento de milhões de pessoas puder ser mostrado como resultado do movimento de forças imprevistas, então ninguém, nem mesmo o mais rico, precisa sentir-se responsável. Metade da população do mundo capitalista passa fome? Bem, em termos de comércio, agimos contra os produtores primários, eis tudo. São os países subdesenvolvidos constantemente obstados em seus esforços para elevar o padrão de vida? Bem, isso simplesmente prova que as condições econômicas para o ‘arranco’, quando a industrialização adquire impulso suficiente para ser automantenedora, são mais complicados do que pensamos, e talvez se deve escrever outro livro[19] sobre o assunto”[20].

A falta de consciência das relações sociais reais, do processo de alienação e exploração, pode obstaculizar a passagem do dilema ético de alguns indivíduos[21] para a ética revolucionária. O mesmo ocorre no primeiro exemplo, pois se o indivíduo não conhece as raízes do nazismo e o terceiro as fontes do seu fracasso pessoal, então não se realiza o encontro com a ética revolucionária. Mas o terceiro exemplo serve para discutirmos tanto a afirmação acima de Ash quanto a chamada ética da libertação de Dussel. O problema dessas duas concepções de ética está no fato de serem “éticas da piedade”, ou, para usar expressão de Schopenhauer, da “compaixão”.
Em primeiro lugar, demonstra uma compreensão não muito clara da sociedade capitalista contemporânea, pois o “pobre” é visto como aquele que tem sua humanidade destruída, mas isto ocorre não são só com eles, embora neles isto se manifeste da forma mais cruel e crua. A sociedade capitalista generaliza a alienação e a infelicidade e, por conseguinte, não se trata de um problema somente dos outros, do “pobre”, mas nosso, de todos os indivíduos que vivem na sociedade capitalista. Além disso, não se trata de pensar numa expressão tão imprecisa quanto os “pobres” e sim a de classes exploradas e oprimidas em geral. Em segundo lugar, a piedade pelos outros não significa somente incompreensão da realidade social moderna, mas também da idéia de que o outro precisa de piedade e que nós, os não-pobres, somos “superiores”. Daí a necessidade de piedade. Ora, isto lembra o socialismo utópico, que Marx observou justamente, que só vê na miséria a miséria. Segundo ele, os socialistas utópicos,

“Na elaboração de seus planos, têm a convicção de defender antes de tudo os interesses da classe operária, porque é a classe mais sofredora. A classe operária só existe para eles sob esse aspecto de classe mais sofredora”[22].

Assim, nada mais natural do que ter piedade dos outros. O outro é um ser digno de pena... Penso no outro, sim, porque tenho pena dele... Ora, em primeiro lugar, o sujeito do processo de transformação social é justamente o proletariado e demais grupos oprimidos e, em segundo lugar, o conjunto de indivíduos explorados e oprimidos são seres humanos que vivem sob condições sociais desfavoráveis mas trazem em si o que existe de mais autêntico na natureza humana, inclusive a capacidade de luta e por isso não precisam da piedade de ninguém. Precisam, isto sim, de companheiros de luta. Vemos em Dussel resquícios da moral cristã, mas consideramos que a libertação segue outros rumos. Por isso, parafraseando Nietzsche, precisamos de companheiros de luta (que é uma luta de todos, minha, sua, deles...) e vivos, “não de companheiros mortos ou cadáveres”.
A ética revolucionária vai além da ética da libertação por considerar interesse de todos os indivíduos da sociedade a luta pela libertação humana, pois todos estão submetidos à alienação (em graus diferentes) e, portanto, é um interesse nosso e dos explorados e oprimidos em geral. Além disso, via o proletariado, se realiza a emancipação humana em geral, o que significa, novamente, nosso interesse comum e pessoal em tal processo. Isto, no entanto, não retira o valor da contribuição de Dussel[23], pois ele rompeu com diversas ideologias e avançou no sentido da compreensão que não basta uma ética humanista descontextualizada, abstrata. É preciso uma ética humanista concreta, histórica e ao mesmo tempo universal. Ele abre caminho para se pensar a ética revolucionária, embora esta já existisse de forma não sistemática antes dele.
Desta forma, para a ética revolucionária, o valor fundamental, que dever valer como um imperativo categórico, é a transformação social. Mas não se trata aqui de qualquer transformação, mas sim da abolição efetiva da sociedade de classes e instauração de uma sociedade verdadeiramente humana. Isto significa que a ética revolucionária descarta as concepções que apontam para falsas transformações ou mudanças que levam à implantação de novas formas de dominação (veja o caso do capitalismo de estado da Rússia, Leste Europeu, China, Cuba, etc., que ao invés de implantar o socialismo e abolir as classes sociais, realizou a reprodução do capitalismo sob outra forma). Uma ética revolucionária não pode compartilhar com ideologias autoritárias e vanguardistas e por isso o que está em questão é uma busca radical de libertação humana e no qual os fins determinam os meios e, portanto, dever ser correspondentes. Os partidos políticos ditos revolucionários não fizeram nada mais do que reproduzir a moral, os valores burgueses e relações sociais baseadas na hierarquia, no culto à autoridade, na alienação. Os partidos reformistas, por sua vez, nunca concretizaram a transformação social mas apenas legitimam e reproduzem a sociedade capitalista, realizando o mesmo processo de reprodução da moral dominante. A ética revolucionária deve tomar essa luta pela transformação radical da sociedade como um imperativo categórico (Kant), como um projeto (Sartre). Portanto, o imperativo categórico (ou projeto) da ética revolucionária é a transformação do capitalismo em sociedade igualitária e libertária, em autogestão social.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Filosofia e sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.



[1] VÁZQUEZ, Adolfo S. Ética. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.
[2] VÁZQUEZ, A. S. Ob. cit., p. 7-8.
[3] VÁZQUEZ, A. S. ob. cit., p. 12.
[4] VÁZQUEZ, A. S. ob. cit.; p. 15-16.
[5] Existem várias definições de positivismo. Aqui consideramos o positivismo como toda a concepção que defende o postulado da neutralidade.
[6] ASH, William. Marxismo e Moral. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.
[7] ASH, W. ob. cit., p. 17.
[8] DILTHEY, Wilhelm. Sistema da Ética. São Paulo, Ícone, 1994, p. 128.
[9] Veja também a posição da filósofa Agnes Heller: “o código moral e a ética podem ser inversamente proporcionais um ao outro. Se as escolhas e as ações são guiadas por um código fixo, a opção é relativamente segura e o seu conteúdo moral nunca é problemático. Além disso, a opção nunca apresenta o caráter de opção individual, só se apoia minimamente num risco pessoal, nunca é dinâmica (no sentido de poder levar em conta o ‘elemento novo’). Quando, numa situação concreta, uma escolha se impõe, a ética não? Para trazer uma certeza maior, ela pode até, ao contrário, diminuir o grau de certeza. Ela não facilita a escolha: leva ao reconhecimento de diversos aspectos da situação e do caráter relativo da opção, leva à tomada de consciência de seus riscos e possíveis consequências. Quando o indivíduo se coloca a pergunta referente ao conteúdo moral e aos possíveis abertos à sua ação, a ética pode proporcionar uma resposta a esta pergunta, mas nunca lhe oferecerá conselhos certos” (HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 2ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 112).
[10] Esta é a posição de muitos filósofos. Entre eles se destaca Spinoza, segundo qual o esforço em conservar-se em seu ser – sua natureza – é a primeira e única origem da virtude. Agir pelas leis de sua própria natureza é agir por virtude, ou seja, é ser ético” (SPINOZA, Baruch. Ética. Rio de Janeiro, Tecnoprint.).
[11] WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5ª edição, São Paulo, Pioneira, 1987.
[12] FREUD, Sigmud. O Futuro de Uma Ilusão. Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978.
[13] REICH, Wilhelm. A Revolução Sexual. 8ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1988.
[14] SARTRE, Jean-Paul. Determinação e Liberdade. In: DELLA VOLPE, Galvano & outros. Moral e Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 34.
[15] MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultura, 1988, p. 142-143.
[16] Claro que qualquer um pode dizer que esta é uma concepção de natureza humana e que, portanto, não serve de critério universal. Porém, isto seria cair no relativismo (cognitivo e, por conseguinte, ético). Sem dúvida, existem várias concepções de natureza humana mas elas são produtos sociais que representam interesses sociais históricos e socialmente determinados, mas isso não quer dizer que sejam equivalentes ou relativas. Por conseguinte, aqui se apresenta uma concepção que, do nosso ponto de vista, é a verdadeira e, portanto, é a base da ética humanista, universal.
[17] FROMM, Erich. Análise do Homem. 2ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1961, p. 28.
[18] Este saber, sem dúvida, pode ser mais ou menos complexo. Mas cabe aqui destacar a relação entre ética e saber: a ética revolucionária é condição de possibilidade de uma consciência correta da realidade e, portanto, é seu pressuposto. No entanto, um indivíduo pode desenvolver uma ética não libertária mesmo possuindo valores humanistas, mas que devido sua consciência limitada derivada de suas “relações sociais limitadas” não consegue ultrapassar uma ética humanista abstrata. Desta foram, a ética revolucionária é desenvolvida quando o indivíduo possui um certo grau de desenvolvimento de sua consciência e também “valores humanistas” e assim observamos que os limites da consciência individual são obstáculos para a ética revolucionária, assim como o inverso é verdadeiro. Porém, no primeiro caso, a superação é possível, mas no segundo, quando os valores são o obstáculo, isto se torna impossível.
[19] Alusão irônica ao livro de ROSTOW, W. W. Etapas do Desenvolvimento Econômico. Um Manifesto Não-Comunista. 5ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
[20] ASH, William. Ob. Cit., p. 152-153.
[21] É claro que isto só é válido para indivíduos com valores humanistas, pois os que possuem valores egoístas, particularistas, etc., utilizam, quando possuem consciência da real determinação da miséria generalizada da sociedade capitalista, o processo que Freud denominou racionalização para evitar o seu conflito psíquico interno.
[22] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 7ª edição, São Paulo, Global, 1988, p., 105.
[23] DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis, Vozes, 1986.


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